O tempo é um eterno fugitivo, por isso, a vida deve ser intensa e a intensidade de viver advém de valores benéficos a sua continuidade, pois o dia seguinte está por amadurecer e deverá ser vivido com a mesma intensidade de hoje. Tempus Fugit, Carpe Diem.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

A Desconstrução do Racionalismo Kantiano

Talvez seja indagável ou, mesmo, inimaginável a motivação que leva o autor a abordar uma tarefa, aparentemente abantesma no meio acadêmico atual e, em especial, na Área do Direito. Contudo, não é objetivo chegar à tamanha apologia da filosofia clássica que possa desestruturar qualquer kantiano convicto. Não resta, ainda, a menor intenção de colocar no mesmo cesto os racionalistas positivistas das classes produtivas com os representantes das classes ociosas, estes, de duvidosa convicção ideológica. Basta devolver ao racionalismo a dúvida de sua validade como ciência e filosofia para facilitar o enxergar das manipulações positivistas que fazem do Direito uma propriedade privada, uma ciência zabaneira que se presta a locupletação de pecúnia, de poder e de prestígio as classes ociosas deste país.  

Postos os devidos esclarecimentos, inicia-se o diálogo com o filósofo Olavo de Carvalho que para um curso de filosofia produziu uma apostila intitulado: Tratado de Metafísica Dogmática, Rio, Seminário de Filosofia (1996).

Se o primado da dúvida metódica é apenas o primado de um equívoco verbal, então fica sob suspeita, igualmente, o primado kantiano do problema crítico. Pois, se o conhecimento humano deve prestar reverência preliminar ante a consciência de seus limites, por que não deveria também submeter-se à exigência de uma justificação preliminar a pretensão de conhecer esses limites?

A motivação imediata que levou Kant a investigar os limites do conhecimento humano foi o estado de profunda irritação em que o deixaram os relatos de Emmanuel Swedenborg sobre visões do céu e do inferno. Os únicos trechos da obra kantiana onde sentimos que a habitual frieza analítica do autor cede lugar a um tom de sarcasmo e de polêmica apaixonada, são aqueles em que Kant procura rebaixar os depoimentos do místico sueco a alucinações de uma mentalidade doente. O escrito Sonhos de um visionário marca justamente a passagem da fase pré-crítica à maturidade do pensamento kantiano. É manifesto que a filosofia crítica tem menos o objetivo de dar um fundamento ao conhecimento científico do que simplesmente de explicitar os fundamentos dados por pressupostos, ao mesmo tempo que nega qualquer fundamento científico aos conhecimentos de ordem mística e metafísica, reduzindo portanto a religião a um conjunto de mandamentos morais sem qualquer respaldo cognitivo.

Mas o curioso é que o filósofo crítico, tão cioso de não se deixar enganar por pressupostos dogmáticos, dá por pressuposta não somente a validade da ciência física, como também a aptidão da razão para conhecer seus próprios limites. Para além do campo dos juízos a priori e da experiência sensível, estende-se apenas, segundo ele, o domínio do incognoscível: pensável, admite Kant, mas incognoscível. No entanto, como se poderia determinar os limites do cognoscível sem algo conhecer do suposto incognoscível cuja borda externa coincide precisamente com esses limites? Se a razão conhece os limites do sensível e, ao mesmo tempo, estatui os seus próprios limites, como poderia ela determinar, igualmente, os limites do terceiro campo, especificamente diferente, que é o da experiência racionalizada, ou ciência, se, conforme diz o próprio Kant, é só a imaginação que conecta o racional e o sensível? Para ser coerente, Kant deveria ter dito que não há limites para a ciência, exceto os da imaginação. Pois, na medida em que opere balizada pela razão e pela experiência sensível, a imaginação, na perspectiva kantiana, não nos dará somente pensamento, mas conhecimento, de pleno direito. E, se é assim, por que rejeitar dogmaticamente a possibilidade de, partindo do sensível, escalar imaginariamente os graus do supra-sensível? Nada, no kantismo, prova que isto seja impossível ou sequer difícil[1].

 

Destaca Olavo de Carvalho (1996): os limites de uma determinada capacidade só podem ser de duas ordens, ou seja, ou são intrínsecos ou extrínsecos, sendo que os limites intrínsecos podem ser conhecidos por dedução a partir do seu conceito, ao que Kant denominou de conhecimento a priori e analítico. Contudo, Kant não admitia que nenhuma dedução, a priori, pudesse migrar imotivadamente para o domínio dos fatos, exigindo, para tal, a validação do fundamento experimental. “Logo, os limites intrínsecos do conhecimento humano, caso conhecidos, seriam puramente formais e não se aplicariam ao conhecimento de nenhum objeto real e determinado. Seriam, por assim dizer, limites vazios, hipotéticos, que na prática não limitariam nada”.[2] De outra sorte, os limites extrínsecos não poderiam ser, em nenhuma hipótese, necessários e incondicionais, mas acidentais e contingentes, pelo fato só poderem ser determinados indutivamente, a partir dos vários conhecimentos efetivos concernentes às várias espécies de objetos; e pelo fato mesmo de serem extrínsecos.[3]

Procurando determinar a priori os limites reais do conhecimento humano, o que é impossível segundo o próprio kantismo, ou provar por indução de fatos contingentes que esses limites são necessários e incondicionais, a proposta da filosofia crítica é, para dizer o mínimo, uma falácia em toda a linha.

O primeiro e o mais básico dos limites assinalados por Kant é que o campo da experiência está circunscrito pelas duas formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo. Mas aquilo que está num lugar determinado está também, a fortiori, no infinito supra-espacial; e aquilo que ocorre num instante determinado acontece também, a fortiori, dentro da eternidade — duas necessidades a priori das mais óbvias que, por si, dariam por terra com os famosos limites que a filosofia crítica procurava estabelecer.[4]

 

Olavo de Carvalho possui uma imensa capacidade crítica analítica e, pacientemente, produziu inúmeros trabalhos de desconstrução dogmática em várias áreas do conhecimento humano. Abordou-se no capítulo Prolegômenos da Metafísica o campo de investigação da Teologia e a necessidade do respeito pela transcendência como um conhecimento existente, a priori, mas inexplorável racionalmente, porém, não reputado como inválido em nenhum momento. Olavo de Carvalho trabalha no texto abaixo a defesa do pensamento de Sto. Anselmo que, de forma resumida, o próprio Olavo transcreve: a existência de Deus é auto-evidente por mera análise, de vez que o Ser infinito e necessário não poderia ser privado da existência, sendo toda privação uma limitação, contraditória portanto com a infinitude, e a possibilidade mesma de uma limitação sendo uma contingência, contraditória com a necessidade.[5]

Mais que logicamente certo, o argumento ontológico é auto-evidente. Denomino auto-evidente o juízo que não pode ter uma contraditória unívoca, ou seja, cuja contraditória não é sequer formulável sem o vício redibitório da ambiguidade. Que eu saiba, esta característica dos juízos auto-evidentes não tinha sido ressaltada até agora. No caso, qual a contraditória do juízo "O ser necessário existe necessariamente"? É "O ser necessário inexiste necessariamente" ou "A existência do ser necessário não é necessária"? Impossível decidir. A contraditória do argumento de Sto. Anselmo é informulável. Rejeitar portanto esse argumento é abdicar do senso mesmo da unidade do discurso, é cair na linguagem dupla que terminará por nos levar aonde chegou Kant.

Porém a raiz de todas essas absurdidades está precisamente na fé dogmática que Kant, imitando Descartes, coloca no poder humano de duvidar. Pois como podemos, de fato, duvidar de nossa possibilidade de conhecer o absoluto? Se nada, radicalmente nada sabemos do absoluto, não podemos sequer formular nossa dúvida quanto à possibilidade de conhecê-lo. Daí a necessidade de ter um ponto de apoio no absoluto para formular a dúvida; mas como, ao mesmo tempo, Kant já tomou essa dúvida como um ponto de partida infalível e não pode abdicar dela de maneira alguma, só lhe resta procurar esse ponto de apoio nos limites mesmos do conhecimento, elevados assim a absolutos e incondicionados, por um giro lógico dos mais singulares. Assim, nada podemos saber do absoluto, exceto que ele está "para lá" dos limites do nosso conhecimento, limites estes que, não sendo determinados pelo absoluto (do qual nada sabemos) nem sendo realidades contingentes e revogáveis (de vez que são provados por mera análise, sendo por isto válidos a priori), passam eles mesmos a ser o próprio absoluto! Pois, se o pensamento nada pode deduzir a respeito do que está fora dele, como pode então conhecer os seus "limites", a não ser que estes sejam necessários a priori? Sendo necessários a priori, são incondicionais; mas são também totais, abarcando o conhecimento humano como um todo e não somente em algumas partes e aspectos: e o todo incondicional é evidentemente absoluto. Logo, a prova de que não podemos conhecer o absoluto sustenta-se no conhecimento que temos do absoluto, com o nome mudado para "limites do conhecimento". Se isto não fosse atentar iconoclasticamente contra um ídolo da modernidade, eu diria que o único comentário que merece essa tese da filosofia kantiana é que se trata de coisa pueril.

Do ponto de vista teológico, a entronização dos limites do conhecimento como o novo absoluto em lugar do velho Deus tem uma conseqüência das mais nítidas: o absoluto passa a ser definido como o não-humano, o humano como não-absoluto. Este abismo é, por sua vez, absoluto: Deus é tudo quanto está fora dos limites do humano, humano é tudo o que está fora e aquém do reino divino. Ou seja: a exclusão do humano do reino divino torna-se ela mesma um absoluto. Que Kant pretenda em seguida resgatar à força de razão prática e fé pietista a ligação entre homem e Deus, após ter demonstrado que ela é absolutamente impossível, só mostra que ele não tinha muita consciência do que fazia. Pois, se a exclusão do homem do reino divino é uma necessidade absoluta, nem mesmo a graça de um Deus onipotente poderia revogá-la.

Na verdade, não pode haver limites necessários ao conhecimento humano, sendo a condição humana definida precisamente pela contingência e pela liberdade. Todos os limites ao conhecimento humano têm de ser contingentes, e é precisamente isto o que possibilita, de um lado, as diferenças de capacidade cognitiva entre indivíduos e, de outro, o progresso do conhecimento. A tentativa de fundamentar a priori os limites do conhecimento humano é autocontraditória e absurda na base, reduzindo-se portanto a filosofia crítica a uma pretensão insensata, ao "sonho de um visionário", que imagina poder puxar-se pelos cabelos para fora da água como o Barão de Münchausen e contemplar de dentro os seus próprios limites externos, como aquelas escadas de Escher cujo topo emenda com o primeiro degrau.[6]

 

O Direito brasileiro vive um período de confusão doutrinal e um esvaziamento institucional nunca visto, mesmo nos tempos da ditadura militar. Por ocasião do centenário da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, muitas foram as homenagens ao grande teórico, verdadeiro pai do método positivista do Direito no mundo. Negar a grandeza de Kelsen na história do Direito é impossível, seria o mesmo que negar a grandeza de Adam Smith ou de Karl Marx. Contudo, no dizer dos festivos Ministros do Supremo Tribunal Federal, encontra-se o sarcasmo erístico de quem lidera um exército de juristas bisonhos.

A autobiografia de Hans Kelsen, teórico que formatou a estrutura do controle de constitucionalidade concentrado hoje praticado não só no Brasil, mas em várias cortes constitucionais mundo afora, foi lançada na segunda-feira (15/8). O evento reuniu grandes personalidades do mundo jurídico brasileiro em uma suntuosa sala da Faculdade São Francisco. O ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Tofolli foi o responsável pela introdução da obra. Também estavam presentes o ministro Ricardo Lewandowski, do STF, o desembargador Paulo Dimas, do Tribunal de Justiça de São Paulo, o advogado Pierpaolo Bottini, colunista da ConJur, os juízes Ricardo Nascimento e Ricardo Rezende, ex e atual presidentes da Ajufesp, o ministro aposentado do Superior Tribunal Militar Flávio Bierrenbach, presidente de honra da Associação de ex-alunos da São Francisco, e Antônio Magalhães Gomes Filho, diretor da Faculdade de Direito da USP.
A autobiografia foi lançada este ano em que se comemora o centenário da famosa teoria pura de Kelsen. Mais de 100 livros foram vendidos durante o evento. Para o vice-presidente da Ajufe na 3ª Região, Ricardo Nascimento, “o Direito brasileiro foi muito influenciado pela obra de Kelsen, e pouco se sabia do homem. Portanto, o livro veio num momento oportuno”.
Durante a sessão, um dos tradutores da autobiografia, Gabriel Nogueira Dias, comentou a morte de Kelsen em 1973 e o fato de seu patrimônio ter sido doado ao instituto que leva seu nome e já tem 40 anos de existência. Lembrou também da atuação do pensador na Carta das Nações Unidas e comentou que a autobiografia estava perdida nos Estados Unidos.
O presidente da Ajufesp, Ricardo Rezende, agradeceu a presença do professor e ex-ministro do Desenvolvimento Celso Lafer, e enalteceu que não havia lugar melhor para abrigar o evento, referindo-se à Faculdade São Francisco como “berço da cultura jurídica”.

Pergunta no ar

O ministro Ricardo Lewandowski contextualizou o papel de Kelsen no cenário jurídico brasileiro. Lembrou que, nos tempos da ditadura, houve um apego muito grande à obra do austríaco, interpretado como positivista. Comentou, ainda, que o país não possuía uma Constituição, e sim uma emenda. E que, durante esse tempo, o Código Civil tinha papel fundamental.
O ministro contou que nesse período surgiram juristas que entenderam que “era preciso abandonar o positivismo erroneamente relacionado à Kelsen” e como reação a esse neo-positivismo, houve uma liberalização da interpretação do Direito. Surgiu, então, o Direito alternativo, extremo oposto ao positivismo. Esse movimento culminou na Constituição da República, que segundo Lewandowski representou “a necessidade de promover mudanças”.
O ministro citou a tendência do STF à pró-atividade, haja visto que a corte brasileira começou a “desbordar das balizas do Direito posto”, sobretudo na decisão em relação à união homoafetiva. Lewandowski terminou seu discurso deixando uma pergunta no ar: "não seria o momento de uma releitura de Kelsen?"

De Kelsen a Renato Russo

O ministro Dias Tofolli, entusiasta da obra da qual foi responsável pelas páginas introdutórias, começou seu discurso lembrando, com afeto, seus tempos de São Francisco e de quando ainda era estudante. Tal lembrança acabou na leitura de um trecho “pitoresco” da autobiografia de Kelsen, justamente onde o austríaco se mostra um aluno de Direito entediado com as aulas e questionador da capacidade intelectual de seus professores. Para Tofolli, isso revela que Kelsen não era uma “figura hermética”, ao contrário do que a maioria pensa.
Tofolli comentou texto publicado pelo jornal Folha de S.Paulo sobre o pensador, que afirma que ler Kelsen é aprender sobre o Brasil. Para o ministro, o texto suscita a pergunta: qual o ditame que une o país? A resposta é a Constituição. Ele citou também o interesse do teórico por mitologia e a possibilidade da “Constituição ser a substituição do mito”.
O ministro fechou o discurso comentando que, em seus tempos de estudante, ouvia-se muito Legião Urbana nas arcadas da São Franscico, e uma das frases de Renato Russo, na visão do ministro, define bem o essência do filósofo. “Disciplina é liberdade”. Para Tofolli, por meio do método de Kelsen “podemos nos libertar das idiossincrasias, preconceitos e de nós mesmos”. [7]

 

Disciplina é liberdade (música Há Tempos – Legião Urbana): Transcrevemos o texto postado por Maurício Gieseler no sítio Blog Exame de Ordem.

 

Lembro-me que li uma vez uma matéria falando do Renato Russo, e nela havia um comentário dele sobre a impressão que aquela frase causou em algumas pessoas, que o criticaram exatamente por afirmar que disciplina era liberdade. O Renato Russo retrucou que era óbvio que ele se referia a autodisciplina, e não a uma ideia de uma disciplina em um país recém saído do período da ditadura militar.[8]

 

Pode-se agregar que o mesmo letrista e intérprete expressava anseios e dúvidas de um país em transição e que suas preocupações merecem ser citadas e analisadas pela posteridade, no âmbito dos estudos de Memória, Sociologia, Ciência Política e História Cultural. Ele escreveu Que País é esse? A música foi uma resposta à frase dita por Francelino Pereira, Presidente da Aliança Renovadora Nacional - Arena, o partido situacionista do regime militar brasileiro, proferida em critica à descrença do povo quanto ao retorno do Regime Democrático, em 1976.[9]

Nas favelas, no Senado

Sujeira pra todo lado

Ninguém respeita a Constituição

Mas todos acreditam no futuro da nação

Que país é esse?

No Amazonas, no Araguaia iá, iá,

Na Baixada Fluminense

Mato Grosso, Minas Gerais e no

Nordeste tudo em paz

Na morte o meu descanso, mas o

Sangue anda solto

Manchando os papéis e documentos fiéis

Ao descanso do patrão

Que país é esse?

Terceiro mundo, se foi

Piada no exterior

Mas o Brasil vai ficar rico

Vamos faturar um milhão

Quando vendermos todas as almas

Dos nossos índios num leilão

Que país é esse?[10]

(foram suprimidas algumas frases repetidas do refrão)

 

A linguagem corrosiva do autor espelhava o ambiente do final dos anos 70, quando um regime antigo estava a morrer, mas o novo ainda não tinha começado e precisava ser preparado, cabendo grande responsabilidade aos juristas. Nada supera a tentativa de mitificação da Constituição Federal. Não bastasse o ululante evento no berçário da cultura jurídica, em uma semana novo evento é realizado, desta vez, no próprio Supremo Tribunal Federal.

Organizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli, juntamente com seu assessor Otavio Luiz Rodrigues Junior, a obra “Autobiografia de Hans Kelsen” foi lançada hoje na Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal, do STF, em Brasília. O livro, publicado pela Editora Forense, celebra o centenário da "Teoria Pura do Direito", de Kelsen, bastante conhecida no meio jurídico.

O presidente da Corte, ministro Cezar Peluso, abriu o evento ressaltando a importância de Hans Kelsen, que “influiu profundamente na história e no pensamento jurídico ocidental” com a obra que criou a Teoria Pura do Direito.[11]

 

Para ter-se um dado estatístico, ainda que precário e muito reduzido, vale o registro de parte do artigo: Constituição de 1988: longa, incompleta, boa e atual, por Robson Pereira (2011).

A Constituição dos Estados Unidos recebeu 27 emendas em 224 anos de existência, a última delas em 1992, quando ficou decidido que aumento de salários para congressistas só valem para a legislatura seguinte. A do Brasil foi promulgada em 1988 e já recebeu 67 emendas constitucionais – uma a cada quatro meses, em média, sem contar as seis emendas constitucionais de revisão. A primeira alteração na Constituição Brasileira foi feita em 1992 e seguiu o exemplo dos EUA para os salários de deputados estaduais e vereadores. A mais recente, a de 67, foi publicada em dezembro do ano passado e prorrogou, por tempo indeterminado, o prazo de vigência do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza.

Mas a comparação entre as constituições do Brasil e dos Estados Unidos param por aí. Ou, pelo menos, não podem ser consideradas sob o ponto do tamanho ou das alterações no texto, uma vez que o próprio conceito de mudança não é absoluto. Não são raros os constitucionalistas brasileiros que defendem a tese de que a grande maioria das emendas tem origem na não-regulamentação de inúmeros dispositivos previstos no texto original e pouca correlação com a essência em si.

Um levantamento do próprio Congresso Nacional mostra que entre os 366 pontos sujeitos a regulamentação exatos 127 permanecem tal como foram incluídos no texto original em 1988. Por analogia, alegam alguns juristas, a Constituição seria “melhor” se todos os seus dispositivos tivessem sido regulamentados, o que praticamente triplicaria o número de emendas constitucionais, em um raciocínio puramente aritmético.

O constitucionalista Alexandre de Medeiros alia-se com aqueles que entendem que a Constituição do Brasil, ainda que não perfeita, é boa, atual “e não deve nada para as de outros países”. É boa, segundo ele, por ter permitido e contribuído para o fortalecimento de instituições como o Congresso, o Judiciário e o Ministério Público, o que garante uma maior efetividade dos direitos fundamentais. E atual, não porque tenha sido esse o objetivo dos constituintes nos 20 meses de trabalho consumidos até se chegar ao texto final, mas pelo fato de ser “genérica”, o que possibilita discussões sobre temas modernos, como pesquisas com células-tronco embrionárias e aborto de feto anencéfalo, entre outros.[12]

Olavo de Carvalho escreveu um parágrafo que encerra este subtema com a exata ideia que se desejava transmitir.

Mais ingênua, portanto, do que a confiança dogmática do racionalismo clássico no poder cognoscitivo da razão, mais visionária que a pretensão dos místicos a um conhecimento experimental de Deus, é a confiança no poder humano de por em dúvida aqueles princípios que fundam a possibilidade mesma da dúvida. Mais ingênuo que qualquer dogmatismo é o princípio mesmo da filosofia crítica, que pretende estatuir dedutivamente limites contingentes e indutivamente limites necessários. Mais ingênuos do que nossos antepassados, que acreditavam na revelação e na razão, somos nós, que acreditamos em Descartes e em Kant, supondo que a negatividade do seu ponto de partida seja prova de modéstia metodológica, quando ela oculta, na verdade, a mais sobre-humana das pretensões: a pretensão de estabelecer limites absolutos ao conhecimento humano. Pretensão superior à do próprio Deus, que não cercou de grades o fruto proibido, mas o deixou ao alcance da curiosidade de Eva.[13]




[1] Olavo de Carvalho. Kant e o Primado do Problema Crítico - Tratado de Metafísica Dogmática, Rio, Seminário de Filosofia, 1996 (apostila). http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/kant.htm acessado em 10/10/2011
[2] Op. cit.
[3] Op. cit.
[4] Op. cit.
[5] Op. cit.
[6] Olavo de Carvalho. Kant e o Primado do Problema Crítico - Tratado de Metafísica Dogmática, Rio, Seminário de Filosofia, 1996 (apostila). http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/kant.htm acessado em 10/10/2011
[7] Lançamento de obra sobre Kelsen reúne personalidades - Por Camila Ribeiro de Mendonça. Revista Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2011. http://www.conjur.com.br/2011-ago-16/lancamento-autobiografia-kelsen-reune-personalidades-direito acessado em 17/08/2011.
[8] Blog Exame de Ordem – Maurício Gieseler
[9] O Brasil em frases (publicadas em VEJA e na imprensa em geral) http://veja.abril.com.br/especiais/veja_40anos/p_092.html acessado em 15/10/2011.
[11]Autobiografia do jurista Hans Kelsen é lançada no STF - Notícias STF - Quarta-feira, 24 de agosto de 2011. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=187248&tip=UN acessado em 25 de agosto de 2011
[12] Constituição de 1988: longa, incompleta, boa e atual - Por Robson Pereira
[13] Olavo de Carvalho. Kant e o Primado do Problema Crítico - Tratado de Metafísica Dogmática, Rio, Seminário de Filosofia, 1996 (apostila). http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/kant.htm acessado em 10/10/2011

PROLEGÔMENOS DA METAFÍSICA

Na lavra de Habermas, encontram-se interessantes reações sobre o retorno a formas metafísicas de pensamento no ano de 1988.[1]
É notório que o ceticismo em relação a esse primado do ser sobre o pensamento e o peso próprio da reflexão sobre questões de método, engendram motivos importantes que pesaram na passagem do pensamento ontológico ao mentalismo. A auto-referência do sujeito cognoscente abre o acesso para uma esfera interior de representações, curiosamente certa, que nos pertence inteiramente, a qual precede o mundo dos objetivos representados. A metafísica surgira como a ciência do geral imutável e necessário; a partir de agora ele só pode encontrar um equivalente numa teoria da consciência, a qual fornece as condições subjetivas necessárias para a objetividade de juízos gerais, sintéticos a priori. Assim é possível explicar a relação ambígua de Kant com a metafísica, bem como a mudança de significado que esse termo sofre através da crítica Kantiana à razão[2].

Ainda, segundo Habermas, pode-se manter a expressão “metafísica” para todo o tipo de elaboração de questões metafísicas que visam à totalidade do mundo do homem, citando as concepções de Leibniz, Spinosa ou Schelling e incluindo a doutrina Kantiana dos dois reinos, situadas na tradição dos grandes esboços sistemáticos, que têm início em Platão e Aristóteles[3]. E conclui este pensamento: Aos olhos de Heidegger, o próprio Nietzsche ainda tem de ser visto como um metafísico, por ser um pensador moderno, sujeito ao princípio da subjetividade[4].
Habermas afirma não ter dúvidas quanto às tarefas reconstrutivas da Filosofia, elencando duas espécies de metafísica: A da natureza (conhecimento que determina objetos) e a metafísica dos costumes ou arquitetônica da razão (Kant), com a separação das faculdades do conhecimento objetivador, da intuição moral e do juízo estético, concluindo que: “Todas as competências da espécie, de sujeitos capazes de falar e de agir, são acessíveis a uma reconstrução racional, na qual se detecta aquele saber prático do qual lançamos mão intuitivamente quando produzimos qualquer realização já comprovada”[5].
“Mas alguma coisa ocorreu. Quebrou-se o encanto. O céu, morada de Deus e seus santos, ficou de repente vazio. Virgens não mais apareceram em grutas. Milagres se tornaram cada vez mais raros, e passaram a ocorrer sempre em lugares distantes com pessoas desconhecidas. A ciência e a tecnologia avançaram triunfalmente, construindo um mundo em que Deus não era necessário como hipótese de trabalho. Na verdade, uma das marcas do saber científico é o seu rigoroso ateísmo metodológico [...]”[6].

Entende-se que os métodos científicos jamais decifrarão a metafísica em função do racionalismo construtivista, mesmo detectando saberes intuitivamente ou a priori, é indispensável a reconstrução, no dizer de Kant a construção de um juízo analítico, de alguma realidade imanente que valide o juízo sintético.
Da mesma forma, a razão não pode perscrutar elementos que transcendam a natureza em todos os aspectos da razão humana. Trata-se de objetos diferentes, de relações diversas que falam de mundos diversos: enquanto a razão fica circunscrita ao mundo natural, ou mundo dos homens, a metafísica reporta-se ao mundo de Deus.
Muito bem colocou Habermas quando, benevolentemente, escreveu que, para o europeu, seria de menos complexidade o entendimento metafísico na tradição judaico cristã, contudo, ao ampliar-se o espectro metafísico a outras formas de tradição religiosa se tornaria impossível harmonizar a compreensão racional diante da variedade e divergentes formas de conhecimentos a priori.
[...] O animal é o seu corpo. Sua programação biológica é completa, fechada, perfeita. Não há problemas não respondidos. E, por isso mesmo, ele não possui qualquer brecha para que alguma coisa nova seja inventada. [...] A aventura da liberdade não lhes é oferecida, mas não recebem, em contrapartida, a maldição da neurose e o terror da angústia.
Como são diferentes as coisas com o homem! Se o corpo do animal me permite prever que coisas produzirá [...] e as coisas por ele produzidas me permitem saber de que corpo partiram, não existe nada semelhante que se possa dizer dos homens. [...] Porque o homem, diferentemente do animal que é o seu corpo, tem o seu corpo. Não é o corpo que o faz. É ele que faz o seu corpo[7].

Kant chamou de metafísica a ciência que estuda Deus, liberdade e imortalidade. Existem outros nomes e outras conceituações, por exemplo, a Teologia, cujo especialista se dedica a estudar os tais fenômenos, porém com grandes limitações geradas pelos dogmas religiosos. Neste ponto, indaga-se: terá a ciência a mesma sorte? Enquanto as religiões impedem a Teologia de qualquer contribuição para uma compreensão harmoniosa das questões metafísicas, a metodologia científica também não procura aprisionar o conhecimento adquirido pela razão, emoldurando o corpo?
A Teologia viveu sob a influência do racionalismo, especialmente o racionalismo alemão. Com investimentos do Estado, inaugurou-se o período da hermenêutica crítica literária e da crítica da forma. Muito se investiu em arqueologia e nas pesquisas linguísticas com o propósito de criação de uma base de entendimento do texto canônico. Vale destacar que os objetivos das pesquisas sempre foram focados na tradição judaico-cristã. Na informação de Werner Georg Kümmel, em seu livro Einleitung in das neue testament  (Quelle & Meyer, Heidelberg, 1973  no parágrafo terceiro de sua introdução, é feito um pequeno histórico a respeito da crítica textual, citando a obra Histoire Critique do NT, de Richard Simon (1689–1693) como o início do caminho para uma introdução ao Novo Testamento como disciplina científica. Kümmel cita inúmeros autores, dos quais desça-se: J. D. Michaelis, com sua obra Einleitung in die göttlichen Schriften dês Neuen Bundes (1750); J.S. Semler: Abbandlung Von freier Untersuchung des Canon (1771 – 1775); J. G. Eichhorn: Einleitung in das NT (1804 – 1827), em cinco volumes constituem a primeira pesquisa realmente livre de opiniões preconcebidas a respeito da origem dos escritos do cânon e do texto do NT. Seguiram-se-lhes, mantendo o mesmo nível de seriedade crítica, as obras de Wette, Schleiermacher, Gredner, Reuss, Hug e outros[8].
Semelhante esforço se deu na análise crítica textual do Antigo Testamento, tendo iniciado também na época do Iluminismo e do racionalismo. O objetivo de trilhar o caminho filosófico contemporâneo à época, naturalmente foi de extrair da Bíblia a religião pura da razão. Na lavra de Georg Fohrer, a intenção baseava-se em considerações de natureza dogmática quanto no resultado da equação de doutrina eclesiástica com a teologia bíblica da parte do supranaturalismo, contra o qual lutava o racionalismo filosófico.[9] Registre-se, ainda, a confirmação da preconização de J. P. Gabler em 1787 em conferência sobre: a diferença real entre teologia bíblica e teologia dogmática e a correta determinação dessas duas disciplinas[10]. Registra, ainda, Fohrer:

Pelos fins de 1880, formou-se a escola histórica da religião [...] provocou uma clara distinção entre a perspectiva da história e a do dogma submetendo a religião israelita, o judaísmo e o cristianismo a uma abordagem estritamente histórica, que fosse impulsionada não por razões teológicas, mas simplesmente no seu próprio interesse, tendo como meta uma síntese histórica[11].

Julga-se necessário informar alguns dos resultados da aplicação de metodologia puramente científica ao cânone da tradição judaico cristã, para melhor compreensão do leitor laico. Destaca-se a reconstituição dos textos mais próximos dos originais que a ciência conseguiu chegar, constatação de pluralidade religiosa em ambos os livros sagrados, a autoria dos livros sucumbiu à análise histórica com exceção das epístolas paulinas, constou-se vários gêneros literários na grande maioria dos livros, indicando, em especial no chamado Velho Testamento, que a tradição oral foi a fonte principal dos manuscritos e a forma escrita feita por vários escritores de diversas influências, constou-se o uso de figuras mitológicas, figuras de linguagem e a influência de religiões próximas. Como consequência da aplicação do método crítico histórico e literário, há uma profunda quebra relacional com a teologia dogmática.
Outrossim, através de arrostados e permanentes estudos na área teológica, verificou-se que, apesar do apedeutismo histórico e literário constatado na juntada dos livros que compõem o cânon, indubitável restou não existirem divergências principiológicas de natureza teológica em nenhum dos livros. A Bíblia é uma harmoniosa coletânea de livros de natureza teológica, com diversos estilos literários e autores desconhecidos.
É interessante notar que o período do Iluminismo assemelha-se a um prelúdio que ambienta o racionalismo, onde uma eclosão de descobertas e saberes afloram como se o pensamento humano, liberto das cadeias medievais e do domínio governativo e da tutela dos dogmas da igreja papal, fosse provocado por um sistema de ignição produzindo simultânea e encadeadamente uma ciclópica quantidade e diversidade de conteúdos filosóficos. Ocorre como se fosse retirada a opressora rolha da mais sofisticada champanhe, liberando seus magníficos odores intensos e provocativos.
Não se pode excluir do estudo da metafísica, ainda que de forma tão resumida, a obra e o pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels, Soren Aabye Kierkegaard, Ludwig Feuerbach, Georg Wilhenlm Friedrich Hegel, Friedrich Wilhelm Nietzsche e muitos outros filósofos de renome e importância literária. Alguns dos citados autores hão de trazer suas contribuições para este trabalho monográfico, contudo, pretende-se limitar a dissertação sobre a metafísica aos limites de um capítulo, mesmo entendendo-se ser o tema central do racionalismo, ou para negá-la, reafirmá-la ou harmonizá-la às novas concepções do pensamento humano.
Antes de prosseguir-se no desenvolvimento analítico torna-se necessário e oportuno estabelecer o conceito autoral sobre o significado da linguagem por referência a metafísica, religião e teologia. A metafísica é a linguagem filosófica, portanto laica, que define a busca racional ou ideal de Deus, liberdade e vida eterna. A religião é o resultado de um experimento sensório permissivo ao dogmatismo, que pode produzir conjecturas filosóficas, teológicas, éticas e morais. Já a teologia se ocupa em conhecer os valores imanentes de Deus na vida dos seres humanos e na natureza. É uma análise profundamente voltada para a compreensão destes valores e de sua origem, razão pela qual a Teologia se ocupa em analisar a totalidade das potencialidades humanas, tanto em relação ao saber e a razão, quanto em relação aos sentimentos e emoções. A Teologia perpassa pela cultura, grupamento social, economia, filosofia, literatura, artes e todas as áreas do conhecimento e da vida humana. A Teologia compreendeu seus limites aos fenômenos transcendentes e não busca mais desvendar o que não nos foi dado a capacidade de conhecer.
Rubem Alves, com sua tradicional verve literária, desenvolve uma crítica a concepção de Marx sobre a religião e seu materialismo dialético, a qual se procurou trazer a termo em sinopse.
[...] Mas o solo em (Marx) pisa desconhece o mundo sacral. [...] Ele é secularizado do princípio ao fim e somente conhece a ética do lucro e o entusiasmo do capital e da posse. [...] De fato, o materialismo que é uma exigência do próprio sistema que só conhece o poder dos fatores materiais. É a lógica do lucro e da riqueza que assim estabelece – e não as inclinações pessoais daquele que a analisa. [...] (para Marx) A religião não era culpada (pelas desgraças sociais de então) pela simples razão de que ela não fazia diferença alguma. [...] Ela não era causa de coisa alguma. Um sintoma apenas. [...] Os filósofos revolucionários, hegelianos de esquerda, não passavam de réplicas de D. Quixote. [...] Marx riu disto. Os hegelianos vêem o mundo de cabeça para baixo. [...] “Não é a consciência que determina a vida; é a vida que determina a consciência”. E ele afirmava: “Até mesmo as concepções nebulosas que existem nos cérebros dos homens são necessariamente sublimadas do seu processo de vida, que é material, empiricamente observável e determinado por premissas materiais. [...] Os homens são os produtores de suas concepções”. “É o homem que faz a religião; a religião não faz o homem”. [...] Quem é esse homem que produz a religião? Ele é um corpo, corpo que tem de comer, corpo que necessita de roupa e habitação, corpo que se reproduz, corpo que tem que transformar a natureza, trabalhar, para sobreviver. Mas o corpo não existe no ar. [...] Vemos homens indissoluvelmente amarrados aos mundos onde se dá sua luta pela sobrevivência, e exibindo em seus corpos as marcas da natureza e as marcas das ferramentas. [...] E Marx se pergunta sobre um outro tipo de trabalho que daria prazer e felicidade aos homens, trabalho companheiro das criações dos artistas e do prazer não utilitário do brinquedo e do jogo... Trabalho expressão da liberdade, atividade espiritual criadora, construção de um mundo em harmonia com a intenção... É claro que Marx nunca viu esse sonho utópico realizado em sociedade alguma. Foi ele que o construiu [...]. [...] Sua marca está nisto: o homem deseja algo. Seu desejo provoca a imaginação visualiza aquilo que é desejado [...]. A imaginação e o desejo informam ao corpo, que se põe a trabalhar, por amor ao objeto que deve ser criado. E quando o trabalho termina o criador contempla a sua obra, vê que é muito boa e descansa...”[12].

Rubem Alves segue questionando os processos que envolvem o trabalhador dentro das condições atuais: ele tem que alienar o seu desejo, pois trabalha para outro e pelo desejo do outro, o objeto a ser produzido não é resultado de sua decisão. Na verdade, o trabalhador, muitas vezes, participa de uma pequena parte do fazer o objeto, aperta um parafuso, dá uma martelada. Por tudo isso, o trabalho não é uma atividade prazerosa, mas uma atividade que dá sofrimento e cria um mundo independente da vontade de operários... e capitalistas, que são igualmente alienados pela lei do lucro. Este é o mundo secular, utilitário, capitalista, regido pela lógica do dinheiro, contra o qual os trabalhadores só possuem seus corpos que para produzirem necessitam estar acoplados às máquinas. Igualmente acoplados estão os corpos que habitam o mundo do lucro, não a máquinas, mas aos colarinhos brancos, aos restaurantes que frequentam, às aventuras amorosas que têm, e às enfermidades cardiovasculares que os afligem. Compreende-se que o que as pessoas têm normalmente nas suas cabeças não seja conhecimento, não seja ciência, mas pura ideologia, fumaças, secreções, reflexos de um mundo absurdo. Marx antevê o fim da religião. Ela só existe numa situação marcada pela alienação. É equivocado pensar que o sagrado é somente aquilo que ostenta os nomes religiosos tradicionais[13].
“Parece que a crítica marxista da religião não termina com ela, mas simplesmente inaugura um outro capítulo. Porque, como Albert Camus corretamente observa, “Marx foi o único que compreendeu que a religião que não invoca a transcendência deveria ser chamada de política...”.”[14].

Olhar a metafísica através da dogmática religiosa é um equívoco metodológico e tentar provar as questões transcendentes é minimamente uma improbidade da razão. O Deus da tradição dogmática religiosa morreu, as certezas eternas se desfizeram. Os homens pensaram que podiam se apropriar da essência do Deus vivo e defini-lo como quem formula uma equação matemática e assegurar, como numa ciência, a imutabilidade da fórmula. Pífia pretensão dos criadores de deuses de acrófobos filósofos, que não sobem as montanhas, que não sabem voar nem se deixam levar pelos ventos do outono, tampouco entendem a dureza do frio dos invernos, não param sua produção para perceberem os odores, as cores, o encontro entre a transcendência e a imanência da vida nas primaveras, encantadas, mágicas. Chegam barulhentas de tanta vida, de tanta beleza e significados, preparando toda a vida do hemisfério para o verão. Esqueceu-se que os corpos humanos não se modificam pelas estações do ano, talvez por isso, as sociedades só consigam sentir a diferença de temperatura e umidade, lamentar e resmungar de acordo com as preferências. Quem sequer tem a capacidade de se harmonizar com a natureza terá a capacidade de decifrar os mais íntimos segredos da transcendência? Pois ela estará sempre a desafiar a incapacidade humana, das sociedades vazias de conhecimentos que deem sentido a existência. É a fonte primeva dos valores fundantes da vida, das sociedades e de todas as ciências, mesmo que estas lhe negue a existência. É da transcendência que emana todos os princípios valorosos que dão a vida à orientação e a possibilidade de ser.


[1] Restam ao autor dúvidas quanto à inclusão nesta dissertação de tema tão controverso na história do conhecimento humano, em especial em função de já se haver concluído que a Ciência do Direito Brasileiro segue uma linha iniciada em Augusto Kant e fundada no neopositivismo. Contudo, a imperiosidade do momento gera razões que propiciem passar-se ao largo do assunto, ainda que, a abordagem seja um modesto ensaio superficial, orientador.
[2] HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, traduzido do original alemão por: Nachmetaphysisches Denken, Philosophische Aufsätze. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. P. 22
[3] Op. cit.
[4] Op. cit. P.23
[5] Op. cit.
[6] ALVES, Rubem. O que é Religião. São Paulo: ARS Poética, 1996. P. 6
[7] Op. cit. P. 10, 11.
[8] KÜMMWL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento; tradução de 17ª ed. Inteiramente refundida e aumentada da Introdução ao Novo Testamento por Paulo Feine e Johannes Behm por Isabel Fontes Leal Ferreira e João Paixão Neto. São Paulo: Paulus, 1982. P. 24-25
[9] FOHRER, Georg. História da Religião de Israel; tradução de Josué Xavier; revisão de João Bosco de Lavor Medeiros. São Paulo: Edições Paulinas, 1982. Pg. 9-10
[10] Op. cit. - Pg. 9
[11] Op. cit. - Pg. 11
[12] ALVES, Rubem. O que é Religião. São Paulo: ARS Poética, 1996. Pg. 55-61
[13] Op. cit. - Pg. 61-66
[14] Op. cit. - Pg. 67