Este texto surge das madrugadas solitárias em Cabo Frio. A
solidão é boa companheira do pensar e as madrugadas o ambiente predileto da
razão, por isso, os pensamentos surgem como velhos amigos que nos visitam em
certas ocasiões da vida. Eles já existem e já nos questionam, nos chamam; é um
convite à madrugada, para que possam ser vistos em suas formas mais límpidas,
mais sublimes. É nesse encontro que se estabelece o pensar não dialético, a
razão lógica, pura das influências diurnas e das demandas serviçais ou, mesmo,
provedoras. É na solidão que a razão, a ética e a lógica dialogam com os seres
de forma honesta, clara, objetiva, a despeito de toda a subjetividade que
reveste o momento.
Tenho recebido cotidianamente a visita de pensamentos sobre
as necessidades humanas. Em breve consulta ao dicionário sobre o significado da
palavra “necessidade”, destaco três grupos de significados distintos. O
primeiro é puramente instintivo: “De primeira necessidade”. “Diz-se de alimento
ou gênero de alimento considerado indispensável para uma boa nutrição”; “Fazer
necessidade”. “N.E. Pop. Urinar ou defecar; fazer precisão”. O segundo grupo é
derivado da evolução de caridade e ganhou força no Século XX com a evolução dos
direitos humanos: “Necessidades especiais”. “Psi. Pedag. Termo que designa a
condição ou as carências de pessoa que apresenta deficiência física, ou mental,
ou comportamental, ou múltipla, ou, ao contrário, capacidades acima do normal,
o que exige métodos especiais de educação e ensino”.
Contudo, o terceiro grupo de significados é o que desperta o
meu interesse e aguça meus neurônios em razão dos significados estarem
diretamente ligados ao conhecimento, ao saber humano. Ninguém necessita daquilo
que não conhece, do que não aprendeu, do que nunca percebeu ou experimentou.
Por outro aspecto, existem as escolhas cognitivas, onde as pessoas elencam
racionalmente um conjunto de necessidades para a própria vida. Mas essas
escolhas cognitivas, também estão ligadas ao conhecimento e ao saber humano. Só
escolhe verdadeiramente quem conhece e tem a opção de fazê-lo.
Dessa forma, as necessidades humanas representam um conjunto
de valores dependentes do conhecimento ou da seleção cognitiva. Não por acaso adentramos
a área da educação, uma vez que não existe conhecimento que não seja
transmitido por qualquer que seja a forma, bem como, não existe escolha se não
houver pluralidade de conhecimentos. Nesse sentido, podemos afirmar que a
educação é o desvendar das necessidades humanas a partir do conhecimento do
mundo e da vida. Não pode ser confundida com informação ou com formação, é o
desvendar da razão, o estímulo ao pensar sobre as coisas do mundo e da vida
humana. Conhecimentos que germinarão em valores próprios, individuais.
Como exemplo, tomemos a figura do caipira que, ainda muito
jovem, tem a oportunidade de migrar da roça para uma grande metrópole e estuda
em alguma das melhores escolas do Brasil, vindo a colar grau no ensino
superior. Entre as coisas do mundo e da vida que descobriu está o conforto de
uma moradia pensada e equipada com boa tecnologia. Descobriu, também, o
significado de poluição urbana e como as construções podem influenciar
positivamente ou negativamente as pessoas que moram ou passam por uma rua ou
cidade. O fogão à lenha, a casa com partes de alvenaria e outras de
pau-a-pique, não sairão de sua memória; deliciosas recordações da infância,
porém, nunca mais morará em algo semelhante. O conhecimento mudou suas
necessidades, mudou sua visão de mundo e de vida. Não se enganem com esse
cidadão que criei, não foi atingido pelo fútil consumismo alardeado pelos
mercados, ele fez uma escolha cognitiva com os valores que floresceram durante
o processo educativo. Devo declinar do mérito da criação desta história, pois é
a história de milhares de brasileiros que deram incalculáveis contribuições ao
País.
É de se indagar, diante do exemplo dado, quais seriam os
motivos para o eterno crescimento das “comunidades” (é como os sociólogos
gostam de apelidar as favelas) em todas as cidades de maior expressão no Brasil?
Não faltam escolas, nem professores, existem verbas suficientes em dotação
orçamentária para a educação. Outra questão de extrema relevância é a clara
percepção dos educadores da rejeição das crianças e dos jovens à escola e ao
acesso ao conhecimento; criou-se um termo técnico para os concluintes do ensino
médio muito sugestivo: “analfabetos funcionais”. Não podemos deixar de
registrar que, também, as faculdades formam analfabetos funcionais aos milhares.
Tais pessoas, intituladas como analfabetos funcionais, não conseguem definir
cognitivamente o que é “qualidade ou condição do que é necessário”; ficam
permanentemente num interstício entre o saber e o não saber. Digo interstício
em razão de ser a educação um processo de descoberta, reflexão e retenção na
memória do que for julgado relevante. A cada faze é necessário um interstício
para a compreensão e seleção, o que acontece naturalmente.
Lembro-me de ter revisto recentemente uma entrevista de
Rubem Alves em que ele comparou a memória a um escorredor de macarrão. Para
fazer uma macarronada é necessário cozinhar a pasta em água. Porém a água
precisa ser descartada e aí entra o escorredor de macarrão. A memória capta
inúmeras informações, mas só retêm o que a razão diz ser importante. Com sua rara
genialidade, Rubem Alves criou a seguinte frase: “O aprendido é aquilo que fica
depois que o esquecimento fez o seu trabalho”.
A memória não é a inteligência, é um depósito de informações
determinadas e utilizadas pela inteligência em sintonia com a cognição, a
volição e o afeto ao saber. Nesse ponto já se pode deduzir que a escola não
pode ser confundida como formadora e informadora de conhecimentos. Formar é dar
forma, ou seja, enformar o discente. Informar não tem nenhum sentido se o
discente não encontrar uma razão ou motivação para horas de falatório. O
esquecimento fará seu trabalho e nada restará na memória.
Conversei recentemente com um amigo engenheiro sobre um
vídeo que assisti sobre o Teorema de Pitágoras. Comentei que o vídeo foi muito
bem feito e todas as informações foram demonstradas sob a forma de desenho
animado colorido, uma beleza de trabalho. Também houve as informações sobre a
aplicação do teorema e a importância para a arquitetura e engenharia. Minha
memória lembrou-me a face do professor que ministrou tal matéria, foi
angustiante ser apresentado a hipotenusa e aos catetos, palavras que nunca
soubera existir. E durante nossa conversa e as muitas explicações sobre as aplicações
práticas do teorema, me dei conta que já não lembrava mais a fórmula elaborada
por Pitágoras, o esquecimento fez o trabalho demasiadamente rápido. O que
qualquer bom pedreiro conhece eu sequer consigo me lembrar.
Houve uma madrugada que me veio à mente o educar dos
animais. No caso das aves, após a plumagem consolidada os ninhos precisam ficar
vazios, por tanto, se o filhote não for capaz de voar virará comida de outro
animal. Os grandes felinos ensinam seus filhotes a caçar caçando, não existe outra
forma. É por isso que os animais domésticos e de cativeiro não conseguem viver
soltos na natureza, seus instintos foram esquecidos pela interferência humana.
Tal interferência é semelhante ao estabelecido no modelo e do conteúdo escolar.
Querem domesticar a razão e a inteligência dos alunos. Tudo é feito para que os
alunos possam ser úteis à sociedade em seus mercados produtivos. Formar com
informação é desrespeitar a dignidade da pessoa humana, é a reafirmação de uma
sociedade de bandos e não de indivíduos.
Assisti uma reportagem apresentada pela Rede Globo no
Fantástico sobre a felicidade e plena ambientação dos moradores de comunidades.
A reportagem mostrava que, praticamente, cem por cento dos moradores sequer
cogitavam em sair das comunidades para qualquer coisa, mesmo para o lazer.
Comércios foram instalados e desenvolvidos, por tanto, sair só mesmo quando não
há alternativas de trabalho local. Não consegui assimilar a metodologia da
pesquisa, mas estava revestida de seriedade. Na conclusão da reportagem, ficou
bem claro que os membros das comunidades sentem orgulho de lá viverem.
É inegável que as comunidades abrigam os narcotraficantes e
são o campo de atuação dos milicianos. As ruas são pouquíssimas, as pessoas se
locomovem por vielas; todos os serviços públicos são precários, muitos
clandestinos e pagos aos milicianos. O Poder Público idôneo não se faz presente
e as escolas estão na jurisdição das comunidades, porém, como são qualificadas
pelo narcotráfico, é lugar neutro, motivo pelo qual precisam estar um pouco
distantes.
Preocupa-me o papel do Estado na educação. Que tipo de mundo
o Estado quer que os alunos descubram? Pelo crescimento das comunidades e pelos
pontos abordados pela reportagem do Fantástico, percebo que o esforço estatal é
para manter os discentes em seus próprios guetos, ou, para dar um ar de
cultura, nos cantões brasileiros, com suas tradições e culturas próprias, onde
um tiro de fuzil não é capaz de assustar ninguém.
Lembro-me do conto de fadas de autoria do dinamarquês Hans
Christian Andersen, publicado inicialmente em 1837, “O Rei Nu”. Em uma
brilhante adaptação de Rubem Alves, destaco somente as conclusões do texto:
No alto de
uma árvore estava encarapitado um menino a quem não haviam explicado as
propriedades mágicas da roupa do rei. Ele olhou, não viu roupa nenhuma, viu o
rei pelado exibindo sua enorme barriga, suas nádegas murchas e
vergonhas dependuradas. Ficou horrorizado e não se conteve. Deu um grito
que a multidão inteira ouviu:
“O rei está
pelado!”
Foi aquele
espanto. Um silêncio profundo. E uma gargalhada mais ruidosa que a salva de
artilharia. Todos gritavam enquanto riam: “O rei está nu, o rei está nu…”.
O rei tratou
de tapar as vergonhas com as mãos e voltou correndo para dentro do palácio.
Quanto aos
espertalhões, já estavam longe e haviam transferido os milhões que haviam ganho
para um paraíso fiscal…”
“Não foi bem assim que Hans Christian Andersen contou
a estória. Eu introduzi uns floreados para torná-la mais atual. Agora vou
contar a mesma estória com um fim diferente. Ela é em tudo igual à versão de
Andersen, até o momento do grito do menino.”
“O rei está
pelado!”
Foi aquele
espanto. Um silêncio profundo. Seguido pelo grito enfurecido da multidão.
“Menino louco!
Menino burro! Não vê a roupa nova do rei! Está querendo desestabilizar o
governo! É um subversivo, a serviço das elites!”
Com estas
palavras agarraram o menino, colocaram-no numa camisa de força e o internaram
num manicômio.
Moral da
estória: Em terra de cego quem tem um olho não é rei. É doido.
Fonte: A Casa de Rubem Alves
Imagino quantos meninos já gritaram que a educação está nua
e foram alvo da indiferença ou da crítica dos interesses econômicos e
políticos. Sufocados pelos muitos projetos de poder que necessitam da
existência de comunidades que não sabem descobrir o mundo. Um dia, quem sabe,
teremos um berro coletivo e o primeiro final da adaptação de Rubem Alves se
torne realidade e o “Rei” ou Estado se cubra de vergonha.